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Estadão Conteúdo

Antes de liberar cultos, Kassio não viu legitimidade de Anajure em outra ação

Em fevereiro, ele votou pelo arquivamento de um pedido da entidade para derrubar decretos municipais interrompendo atividades religiosas

ministro Kassio Nunes Marques

Não foi só a Advocacia Geral da União (AGU) que mudou de posição sobre a legitimidade da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) para acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) contra medidas de isolamento determinadas por governadores e prefeitos. O ministro Kassio Nunes Marques também trocou de lado. Em fevereiro, ele concordou com os colegas e votou pelo arquivamento de um pedido da entidade para derrubar decretos municipais que impuseram toque de recolher, interrompendo atividades religiosas. No último sábado, 3, em uma ação similar proposta pela mesma Anajure, liberou celebrações religiosas presenciais no pior momento da pandemia.

A primeira ação foi rejeitada por unanimidade há menos de dois meses, em fevereiro deste ano, no plenário virtual do tribunal. Nunes Marques seguiu o voto do ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, que destacou que, para entrar com uma ação contestando a validade de medidas do Executivo, as entidades precisam cumprir uma série de requisitos, como representar determinada categoria profissional e estar presente em pelo menos nove Estados.

“A Corte recusa legitimidade para instauração de ações de controle concentrado a entidades constituídas a partir de elementos associativos pertinentes a determinados valores, práticas ou atividades de interesse social, tais como cidadania, moralidade, desporto e prática religiosa”, escreveu Moraes ao rejeitar o recurso da Anajure.

Em seu voto, o relator observou ainda que as arguições de descumprimento de preceito fundamental, instrumento processual escolhido pela Anajure nos dois casos, só têm cabimento depois de esgotadas todas as vias possíveis para sanar a lesão a preceitos fundamentais da Constituição.

“Caso os mecanismos utilizados de maneira exaustiva mostrem-se ineficazes, será cabível o ajuizamento da arguição. Da mesma forma, se desde o primeiro momento se verificar a ineficiência dos demais mecanismos jurisdicionais para a proteção do preceito fundamental, será possível que um dos legitimados se dirija diretamente ao Supremo Tribunal Federal, por meio de ADPF”, observou.

Embora tenha acompanhado integralmente o voto de Moraes na ocasião, Nunes Marques não viu impedimento na nova ação, contra decretos locais que vetaram os cultos nos pacotes de medidas para desacelerar a transmissão do coronavírus. Em sua decisão, o ministro indicado pelo presidente Jair Bolsonaro considerou que havia ‘premissas fáticas distintas’ nos dois casos.

“Aqui o provimento buscado pela Associação guarda relação fundamental com seus objetivos essenciais, consistentes na proteção da liberdade religiosa. Por prudência, ao menos neste momento processual, esta Suprema Corte deve prestigiar a instrumentalidade do processo, na medida em que o objeto desta ação diz com a proteção da liberdade de culto e religião, garantia constitucional”, escreveu.

Nunes Marques também dispensou a necessidade de esgotamento de outras vidas processuais no caso, encurtando o caminho percorrido pela Anajure para derrubar os decretos contestados, por considerar que as violações ao direito fundamental à liberdade religiosa e ao princípio da laicidade estatal um ‘problema amplo’ na pandemia e ligado diretamente à atuação da associação.

“A questão da subsidiariedade também não é óbice ao conhecimento desta ação. A autora apontou decretos municipais e estaduais que estariam ferindo a liberdade de culto e religião, dada a severidade das medidas. A heterogeneidade dos instrumentos normativos impugnados, bem como a sua profusão em todo o território nacional, sob as mais diferentes configurações, torna a ADPF adequada para debelar a inconstitucionalidade”, pontuou.

“Se a ação fosse ajuizada unicamente contra um decreto municipal, possivelmente não seria a ADPF apropriada; no entanto, na inicial fica claro que o problema é mais amplo e tem a ver com a reação do Poder Público em diferentes locais do país à epidemia de covid-19, atraindo, assim, aspectos federativos que reclamam uma solução nacional e uniforme – daí a necessidade do controle concentrado por meio de ADPF”, acrescentou.

AGU muda de lado

Na ação em que Nunes Marques liberou celebrações religiosas presenciais, a Advocacia Geral da União (AGU) se manifestou inicialmente contra o reconhecimento do pedido. Responsável por defender judicialmente os interesses do Planalto, que se opõe publicamente às medidas restritivas impostas por Estados e municípios, a AGU entendeu que a Anajure não tinha legitimidade para ingressar com a ação. Depois da publicação de reportagem do Estadão sobre o posicionamento da pasta, o advogado-geral da União, André Mendonça, enviou uma nova manifestação, revendo o entendimento, e se posicionando, agora, a favor da legitimidade da Anajure.

Celebrações liberadas

Nunes Marques autorizou as celebrações religiosas em todo o País, desde que sejam adotados protocolos sanitários em igrejas e templos, limitando a presença em cultos e missas a 25% da capacidade do público.

“Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual”, escreveu o ministro, que lembrou a importância das celebrações da Páscoa para os cristãos.

Em um parecer de 16 páginas, o magistrado apontou também que diversas atividades essenciais continuam liberadas durante a pandemia. A decisão está alinhada aos interesses do governo federal, que está em guerra com governadores e prefeitos de todo o País contra toque de recolher, lockdown e outras medidas de distanciamento social.

Recursos e críticas

Na prática, Nunes Marques se antecipou ao colega Gilmar Mendes, relator de outra ação sobre o mesmo tema, apresentada pelo PSD para contestar o decreto do governo de São Paulo que vetou atividades religiosas coletivas presenciais durante as fases mais restritivas do plano de combate ao coronavírus. Gilmar, no entanto, havia indicado que não tomaria uma decisão antes da Páscoa, apesar das manifestações em regime de urgência enviadas pela Procuradoria Geral da República e pela Advocacia Geral da União.

Ao Estadão, o decano Marco Aurélio Mello criticou a liminar de Nunes Marques. “Pobre Judiciário”, disse o ministro. “O novato, pelo visto, tem expertise no tema. Pobre Supremo, pobre Judiciário. E atendeu a Associação de juristas evangélicos. Parte legítima para a ADPF (tipo de processo que discute cumprimento à Constituição)? Aonde vamos parar? Tempos estranhos!”, prosseguiu.

A corrida ao Supremo contra a decisão foi aberta com pedidos do partido Cidadania e do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), que chegou a ser intimado por Nunes Marques a cumprir a liminar depois de anunciar nas redes sociais que não seguiria a ordem do ministro.

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