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FolhaPress

Brasília reinventa imaginário cultural costurando retalhos de país, do cinema à poesia

O imaginário de política, corrupção e rock anos 1980 tem sido desmontado pelos artistas de Brasília

Foto: Jucimar de Sousa

Na temporada de chuvas, Brasília parece menos Brasília. Os narizes deixam de sangrar, os caminhos arborizados ostentam o verde, os ipês brancos abrem seus tapetes e as amoreiras tingem as quadras de vermelho.

A visão de construções “com espaço calculado para nuvens”, como definiu Clarice Lispector, e a atmosfera de ordem e utopias de Oscar Niemeyer e Lucio Costa se dissipam nas cidades-satélites. O mau gosto dos prédios de luxo de Águas Claras e o caos inventivo das construções populares de Taguatinga e Ceilândia insistem em chamar Brasília de volta às contradições do Brasil.

Em Ceilândia, o cineasta Adirley Queirós, de 51 anos, circula pelo centro planejado e observa seus lugares de afeto. Pouco depois, ele estaciona o carro e subimos ao seu apartamento, onde trabalha na montagem de seu próximo filme. Indo até a varanda, aponta os limites do Distrito Federal e os morros verdes de Goiás.

Queirós dirigiu “Branco Sai, Preto Fica”, de 2014, um dos filmes mais vigorosos do cinema nacional recente, e o longa “Era uma Vez Brasília”, de 2017. Estruturado como ficção científica, “Branco Sai” mira a violência policial, o autoritarismo do Estado e o racismo na periferia do sonho modernista. O longa traz storyboards com ataques a bomba ao Congresso e prédios do Plano Piloto.

“A minha geração não circulava muito. A gente ia para Brasília para procurar emprego. Não existia essa relação de lazer. Brasília sempre foi opressiva. Aquela aparência de liberdade, para mim, nunca existiu”, ele conta, enquanto almoçamos num restaurante nordestino. “Ceilândia foi expurgada de Brasília por questões estéticas. Ficava perto do aeroporto e a primeira imagem que você tinha de Brasília era a favela.”

A exigência de passaporte para entrar em Brasília, na ficção de “Branco Sai”, deriva de experiências de sua juventude. Na década de 1980, com a febre do rock brasiliense, seu grupo de amigos pegava um ônibus até o Plano Piloto, no afã de comprar porrada.

“A gente arrumava briga para caralho. Brasília já era aquela turma forte de academia. A gente voltava em silêncio total nesses ônibus. Apanhávamos muito”, lembra o cineasta nascido no estado de Goiás.

“A sensação que eu sempre tive com Brasília é que eu estava sendo vigiado. Eu fui a Brasília pela primeira vez com 15 anos, depois de 11 anos que eu morava em Ceilândia. Eu e meu irmão vendíamos balinha de chocolate na rodoviária. O ônibus parou na Asa Sul e eu vi um campo de terra. Eu achei que era espetacular. Depois, percebi os olhares de que eu não era dali”.

O imaginário de política, corrupção e rock anos 1980 tem sido desmontado por artistas de Brasília e das cidades-satélites do Distrito Federal. Na música, a carência de tradições da capital sexagenária se enriquece com as sonoridades de outras regiões do país, sobretudo do Nordeste. Das artes visuais à poesia, novas vozes do DF exploram temas e linguagens distanciados dos olhares superficiais sobre a cidade e suas margens. E uma parte delas deseja ocupar as ruas semidesertas.

A figura alegórica do calango voador, filho do Sol e da Terra, dorme no quintal do grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, na 813 Sul. A peça tem um esqueleto de arame e uma pele de barbantes entrelaçados e pintados de verde, rosa e amarelo.

O bioma do cerrado seduziu o pernambucano Tico Magalhães, de 44 anos, fundador do Seu Estrelo. Residente na capital federal desde os 17 anos, ele frequentou os maracatus Nação Estrela Brilhante e o Piaba de Ouro, no Recife, mas, ao criar seu próprio grupo, no ano de 2004, evitou reproduzir a rigidez da tradição de Pernambuco.

“A gente já não é maracatu. O maracatu está lá no Recife”, pondera Magalhães, mais próximo do samba pisado. “Por Brasília ser uma cidade inventada, com pouco tempo, 61 anos, sempre fiquei com essa ideia de criar uma brincadeira nova”.

Em 1963, o Boi de Seu Teodoro, em Sobradinho, criou outra ponte com as festas populares. Morto em 2012, o mestre maranhense Teodoro deixou sucessores na família. Sua filha, Tamá Freire, de 55 anos, lidera o projeto Bumba Maria Meu Boi, que ilumina a presença feminina na história do grupo. Suas integrantes são vítimas de violência doméstica.

“Conseguimos demarcar um território feminino. Eu queria que elas aprendessem algum ofício dentro do boi além de dançar, cantar e tocar. Elas bordaram a frente dos chapéus”, conta Freire, conhecida no samba como Jamelinha da Mangueira.

Ela sente falta de um intercâmbio mais forte com as tradições de outras partes do país. “Quando você traz grupos culturais de fora, se não forem expressivos, as pessoas não comparecem para conhecer.”

Em outubro passado, uma batucada cresceu no setor comercial sul de Brasília, na Galeria dos Estados, a três quilômetros da praça dos Três Poderes. Aos domingos, a feira do instituto No Setor passou a reunir artesanato, produtos orgânicos e atrações musicais na região mais estigmatizada da capital, vista por muitos moradores como uma “cracolândia”.

Logo quando as barracas são recolhidas, começa a roda de “pandeiristas amadores”, assim batizada pelo poeta Ian Viana, de 25 anos, um dos agitadores do No Setor. A primeira edição da feira dominical não pressentia as centenas de jovens frequentadores das semanas seguintes. Na batucada, são puxados sambas, cocos, baiões e clássicos brasileiros.

Dançando num canto, o compositor Kirá, de 22 anos, aceita conduzir um coco. Ele nasceu no Ceará e, aos 11 anos, se mudou com a mãe para Brasília. Filho do músico francês Manu Chao, de ascendência galega e basca, Kirá afirma que o pai popstar exerceu somente uma “influência pessoal”, pois as suas referências estéticas são os cordelistas nordestinos Jackson do Pandeiro, João do Vale, Alceu Valença e João Cabral de Melo Neto. Em casa, ouve maracatu, flamenco e hip-hop.

Um dia depois da roda, Kirá me encontra na livraria e bistrô Sebinho, a poucos metros de sua casa. “Fui redescobrir o Nordeste aqui. Não sabia que era diferente. Aqui tem muitos nordestinos e eu me aproximei do coco e do boi de Seu Teodoro. Descobrindo Brasília, eu redescobri o Ceará. Mas não quero fazer música nordestina”, diz, entre goles de café.

Na feira do setor comercial, Ian Viana o convoca em voz alta, sem chance de recuo, para liderar a cantoria. Viana usa um brinco cigano e contas de Ogum e Oxóssi. Nascido em Taguatinga, sentia uma inadequação semelhante à de Adirley Queirós ao pisar nas superquadras. Ele vestia com finesse e usava o melhor tênis para não ser visto como um “vira-lata”.

Na sala de seu cafofo, vejo imagens de umbanda e quadros do artista mineiro Chico Monteiro. Em seu quarto, retratos de Glauber Rocha e Oswald de Andrade, uma bandeira do Brasil convertida em toalha e, acima da porta, uma cobra coral feita por sua avó. “Eu Era Aquela Cobra Coral no Quintal da Tua Infância”, seu livro de poemas lançado pela Patuá, tem a cadência de sua prosa falada.

Sua ideia de revolução cultural passa pelo encantamento do cotidiano com macumba, Carnaval, sexo, meditações de Osho, poesia e xamanismo.

“Brasília precisa olhar para as tradições culturais de quem fundou essa cidade e botar a mão na massa”, diz. “Temos tradições estabelecidas, como samba de roda e coco, e aquelas dispersas. Por exemplo, a tradição mística envolvendo o cerrado e a Chapada dos Veadeiros, dos objetos voadores não identificados, dos cristais. Como a capital é muito nova, qualquer ousadia pode ser invenção.”

A poeta e historiadora Julia Moura, de 22 anos, frequentadora da roda, reconhece os laços entre a ocupação de espaços públicos, as rodas de coco, os amigos produzindo uns aos outros e os produtores culturais atuando em conjunto. “Temos exercitado o péssimo hábito de tratar as nossas contradições nas redes sociais, e não coletivamente nas ruas.” Admiradora de Jorge Mautner e Hilda Hilst, Moura prepara “Favo”, seu primeiro livro de poemas. “É preciso repensar nossa relação com a palavra antes de todas as coisas.”

A ocupação das superquadras fascina a cantora Gaivota Naves, de 33 anos. Neste ano, ela lança o EP “Concretutopia”, gravado com a banda Akhi Huna e produzido com Gustavo Halfeld, João Davi e João Pedro Mansur. Sua outra banda é o coletivo Joe Silhueta, encabeçado pelo compositor Guilherme Cobelo, que prepara seu segundo álbum, “Sobressaltos e Outras Quedas”, produzido por Halfeld e Jota Dale, “com influências do udigrude nordestino, entre o folk e o psicodélico brasileiro”.

“Meu EP fala de ocupar Brasília, da vontade de valer o sonho. É como se não conseguisse se apropriar dessa cidade-escultura”, diz Gaivota. “A cidade não é muito ocupada, é muito setorizada. O Plano Piloto ainda está dormindo. E tem essa coisa de servidores públicos não gostarem de música. Lutamos para ter música ao vivo. O artista está o tempo inteiro na margem.”

Na arte contemporânea, o planalto central se uniu ao planalto de Gizé, no Egito. Convidado para a mostra internacional “Forever Is Now”, o artista João Trevisan, de 35 anos, fez a escultura “Um Corpo que se Levanta”, com dormentes da estrada de ferro, diante das pirâmides.

Trevisan tem formação autodidata e migrou do direito para as artes. Pelas manhãs, ele caminhava de sua casa até a linha de ferro para sondar se havia dormentes descartados. Em caso positivo, retornava às dez da manhã e carregava as toras de 30 quilos por três quilômetros, despejando as peças no ateliê. Esse esforço braçal se manteve ao longo de dois anos.

“Por girar em torno da ferrovia, meu trabalho já tem um pensamento específico. Tem também a ideia da materialidade. Por isso que eu não gosto de falar tanto da questão política, senão a gente se limita muito. Mas a questão política é evidente. Estou falando de materiais de uma ferrovia, sobre esses corpos, essa relação do trabalho”, diz Trevisan, que faz residência artística na galeria Raquel Arnaud, em São Paulo.

Sua escultura de seis metros se equilibrou na paisagem egípcia. “Eu acabo tratando o dormente como se fosse um corpo. Comecei a pensar nesses corpos que se levantam, que são os dormentes empilhados. Meu trabalho era dentro dessa ideia da pirâmide construída para chegar aos céus, mas também relacionado com os obeliscos retirados do Cairo.”

Os corpos negros também se abrem para os céus nas pinturas do artista plástico Antonio Obá, de 38 anos, representado pela galeria Mendes Wood DM. Quadros como “Sesta”, de 2019, e “Eucalipto – Corpo Elétrico” e “Os Infantes – Irreverência”, de 2020, são atravessados pelo espírito interiorano do Distrito Federal e por suas paisagens rurais. Nascido em Ceilândia e residente em Taguatinga, Obá demonstrou talento precoce para o desenho, mas sua sensibilidade foi despertada pela música.

Seu trabalho busca uma verdade íntima. “Queria entender os elementos socioculturais que me formaram. Percebi que era inevitável falar de uma raiz familiar e que não dava para desvincular de uma raiz maior, que é a própria formação do Brasil”, diz. “Eu problematizo a questão do corpo negro, mestiço, mas pegando aspectos históricos que fazem parte de uma dinâmica de preconceito no Brasil e em outras partes do mundo.”

Outro caminho foi percorrido pelo fotógrafo Diego Bresani, de 39 anos. Em Brasília, as trilhas sinuosas traçadas por pedestres nos gramados são chamadas de “linhas do desejo”. Ele encontrou um significado mais largo para o improviso. “Meu trabalho pessoal parte da relação com a cidade, da tentativa de entender uma cidade que não é comum. Minha série é uma tentativa de entender a cidade como uma panela de pressão. O urbanismo de Lucio Costa é lindo, mas viver nele é muito duro.”

“Existem calçadas, mas não são lógicas, obedecem mais à questão estética do que à prática. Os pedestres precisam romper essa lógica modernista e criar seus caminhos. A cidade exige da gente uma selvageria.”

Destacado na cena de fotografia, Bresani realizou retratos de políticos de direita para a revista Piauí –de Bolsonaro e seu filho Eduardo à Sara Winter e Joice Hasselmann.

Seu olhar prefere os caminhos bifurcados nas terras do Plano Piloto, rasgados por trabalhadores em direção ao trabalho ou a pontos de ônibus. Na pandemia, Bresani imaginou que seria mais fácil fotografar os atalhos desertos. Mas, na primeira saída, percebeu que a grama crescera e apagara todos os rastros. Do alto, prevaleciam as retas de Lucio Costa. Aos poucos, com a reabertura da cidade e o vaivém de pernas, as linhas de desejo renasceram no barro vermelho de Brasília.

Por Claudio Leal 

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