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Instabilidade na renda trava recuperação dos mais pobres

Os altos e baixos enfrentados pelas famílias mais pobres durante a pandemia parecem repetir o mesmo roteiro por todo o país

Primeiro, Kelcilene de Souza, 44, tirou a carne do cardápio; em seguida, cortou as frutas. Sem emprego e dependendo ainda mais do auxílio emergencial para ajudar a alimentar a família, ela hoje agradece por ainda estar conseguindo comprar arroz e feijão.

“Como sou trabalhadora doméstica e tenho problemas de saúde, ficou ainda mais difícil conseguir um emprego durante a pandemia. Ninguém queria dar trabalho e tinha medo de ficar doente. Cheguei a receber R$ 120 por mês, mas a alegria do pobre dura pouco e cortaram pela metade”, conta.

Com a redução do benefício no segundo trimestre deste ano, a família, que mora de favor, nem consegue mais pagar as contas de água e luz. “A gente reduz a compra do supermercado para pagar a internet para as crianças estudarem. Parecia que as coisas iam melhorar, mas tudo ficou muito difícil.”

A constatação de piora nas condições de vida não é exclusiva da família de Kelcilene.

Os altos e baixos enfrentados pelas famílias mais pobres durante a pandemia parecem repetir o mesmo roteiro por todo o país: desemprego, pagamento do auxílio emergencial, fim do benefício em dezembro e volta dele em abril (com a metade do valor).

Com a entrada e saída de recursos em um curto intervalo de tempo, esses brasileiros vivem em uma espécie de efeito sanfona da renda –já tinham pouco, perderam quase tudo e agora brigam para recuperar apenas uma parte.

Em um intervalo de pouco mais de um ano, o número de pessoas em situação de pobreza no país, que era de mais de 23 milhões (11%) no fim de 2019, chegou a cair para cerca de 9,8 milhões (4,3%) na metade do ano passado, momento em que o auxílio emergencial chegou a mais famílias.

Com o fim abrupto do benefício, o número de mais pobres explodiu no primeiro trimestre de 2021, indo a mais 34,3 milhões (16,1%), para mais tarde voltar a cair, para os atuais 27,7 milhões (12,98%), com a volta do benefício em abril.

Os dados da FGV Social consideram famílias que ganham até R$ 261 por pessoa.

“O país tem crescido pouco e a desigualdade aumentou nos últimos anos. Sobreviver sem muitos recursos já é complicado, mas a instabilidade de renda coloca um problema extra nessa equação”, diz Marcelo Neri, coordenador da FGV Social.

Neri também lembra que a queda de renda na metade mais pobre da população chegou a 21,5% desde o último trimestre de 2019, antes da pandemia. Entre os 10% da população com melhores condições de vida, essa perda foi de 7,16% no mesmo período.

“Praticamente todas as famílias tiveram alguma flutuação de renda nos últimos anos, mas para os mais pobres, essa inconstância pode significar a falta das condições mais básicas em casa.”

Antes da pandemia, essas famílias já haviam passado por dificuldades com a recessão de 2015 e 2016, que empurrou mais de 4 milhões para a pobreza. Com a recuperação tímida da economia, entre 2017 e 2019, e as filas de pessoas aguardando para entrar no Bolsa Família, a melhora no cotidiano dessas famílias também foi lenta.

“Uma diferença importante da crise atual para a anterior é que as famílias mais pobres agora sofreram quase que uniformemente, por não conseguirem trabalhar”, diz Neri. Nas crises com raiz econômica, ele lembra que famílias e amigos acabam se apoiando.

Um outro levantamento conduzido por ele aponta isso: 61% dos brasileiros mais pobres contam com a solidariedade da família ou de amigos quando passam por algum aperto financeiro.

“Os brasileiros mais pobres são mais sujeitos a esses altos e baixos e dependem que seus conhecidos estejam em uma situação melhor para ter alguma ajuda. A pandemia tirou o emprego de muito mais gente e aumentou a dependência de programas sociais.”

O professor ressalta que o esforço para que os mais pobres tenham um aumento de renda também flutua nos anos eleitorais, como 2022. “Em anos de eleição, os programas de transferência costumam receber mais recursos, que duram até o ano seguinte.”

“A vida do brasileiro mais pobre é mais do que uma montanha-russa: é um brinquedo em que o carrinho quebra no meio do caminho”, diz Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco e um dos criadores do Bolsa Família.

“Não são apenas altas e quedas de renda, mas a sensação de que a vida não avança. A pandemia fez com que, pela primeira vez, o trabalho informal não conseguisse amortecer a alta do desemprego e não há uma estratégia clara do governo que combata a crise agora.”

Ajudante de salão de beleza Marinalva Ferraz, 55, mal consegue terminar uma frase sem pedir uma oportunidade de trabalho. Desde o começo da pandemia, ela não consegue ocupação fixa e depende do auxílio emergencial para sobreviver.

“Quando os salões puderam reabrir, o freguês não apareceu. A queda era de uns 70%, em relação ao que a gente atendia antes da quarentena. Acabaram me demitindo e me vi sem ocupação. Acho que foi um dos dias mais tristes que já vivi.”

Ela hoje evita fazer planos de longo prazo. Sua meta virou fazer bicos para conseguir pagar o aluguel. “Às vezes, falta ânimo para levantar. A conta chega e não tenho como pagar o que já está atrasado, não desejo isso para ninguém.”

Outro levantamento recente, do pesquisador Daniel Duque, do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas), aponta que essa piora na vida dos brasileiros se espalhou por todo o país.

Em relação ao total da população, houve aumento da pobreza em 23 estados e no Distrito Federal, diz o pesquisador, entre janeiro de 2019 e o primeiro mês deste ano. No DF, essa alta foi de oito pontos percentuais, seguido pelo Rio de Janeiro (alta de 6,9 pontos).

Neste caso, é considerado o índice de pobreza do Banco Mundial (de até R$ 400 mensais por pessoa) e de extrema pobreza (de até R$ 160). Com a piora nas condições de vida do brasileiro e na tentativa de criar uma marca própria na transferência de renda, o governo Bolsonaro propôs uma reformulação do Bolsa Família, com o nome de Auxílio Brasil. O desenho do programa, no entanto, ainda é apenas um esboço.

“Uma das propostas do governo era atrasar o pagamento de precatórios [dívidas do governo reconhecidas pela Justiça] para abrir espaço para um programa que pague mais que o Bolsa Família. Mas isso é sustentável? Esse é meu medo”, questiona o pesquisador.

“Caso a gente avance na solução dos precatórios, você vai ver um Bolsa Família com um aumento porque aumentou bastante o custo de vida, os mais vulneráveis ficaram para trás. É natural que o Brasil reponha as condições de vida dessa população mais frágil”, disse o ministro Paulo Guedes (Economia) no começo de setembro.

As ameaças do presidente Bolsonaro ao STF (Supremo Tribunal Federal), que se intensificaram na última semana, no feriado de 7 de setembro, também travam o acordo que vinha sendo costurado com o Judiciário para deixar de pagar a totalidade dos precatórios em 2022.

No fim de agosto, o governo apresentou uma proposta para o Orçamento de 2022, sem prever a versão turbinada do Bolsa Família.

“Se a sustentabilidade do novo programa for condicionada a esse tipo de saída, vai ter dinheiro em 2022 e não se sabe se vai ter mais lá na frente”, diz Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

“A transferência de renda não pode se dar de forma incerta, as famílias precisam saber que podem contar com aquele recurso. Ou vão acabar vivendo em mais incertezas”, completa a ministra.

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