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FolhaPress

Brasil de Bolsonaro pega fogo no Festival de Berlim com dramas do Centro-Oeste

Centro-Oeste tem fornecido boa parte da chama que mantém o cinema brasileiro recente

Festival de Berlim/Foto: Reprodução

Não há de ser à toa que os dois filmes brasileiros representando o Centro-Oeste no Festival de Berlim fazem alusão ao fogo já em seus títulos. Tanto “Mato Seco em Chamas”, dirigido pelo goiano-ceilandense Adirley Queirós e pela portuguesa Joana Pimenta, quanto “Fogaréu”, da goiana Flávia Neves, são dois longas que veem, ainda que simbolicamente, na combustão de uma sociedade interiorana conservadora uma das únicas possibilidades de mudança.

O longa de Queirós e Pimenta foi apresentado na mostra Fórum, dedicada a filmes de caráter experimental, mas, se estivesse na disputa pelo Urso de Ouro, não deixaria nada a desejar aos concorrentes em termos de qualidade -aliás, talvez nenhum da disputa tenha um projeto tão original e pungente como ele.

No mesmo estilo que consagrou “Branco Sai, Preto Fica”, lançado em 2014 por Queirós, a dupla de cineastas investe em uma mistura cinematográfica entre distopia, documentário e drama realista, desta vez sobre um grupo de mulheres fora da lei, em Ceilândia, no Distrito Federal. Não muito longe do Palácio do Planalto, desafiam um governo autoritário -e quem mais se puser contra elas.

As líderes do grupo de “gasolineiras” -as bandidas que refinam petróleo e revendem combustíveis de forma ilegal- são duas meio-irmãs, as atrizes não profissionais Léa e Chitara, ambas assumidamente criminosas. E são duas mulheres hipnóticas, uma espécie de versão mais naturalista -e terceiro-mundista- das grandes heroínas desbocadas e destemidas dos filmes Blaxploitation, dos anos 1970.

Pimenta e Queirós trabalharam juntos pela primeira vez há sete anos, quando a portuguesa dirigiu a fotografia de “Era Uma Vez Brasília”, lançado em 2017. “Tivemos vontade de criar alguma coisa juntos durante aquele processo, e então começamos a escrever paralelamente o roteiro de ‘Mato Seco'”, conta Pimenta.

Queirós diz que a ideia era que fosse “um bangue-bangue sobre quatro mulheres em Ceilândia que acham petróleo e declaram guerra ao Brasil”, conforme ele próprio define a trama.

Grande parte do que Léa e Chitara falam em cena vem da própria experiência de vida delas. Elas foram chamadas para o filme depois que, após muita procura, alguém apresentou Chitara aos cineastas. “Quando dissemos que queríamos ela no longa, ela perguntou se era para um filme pornográfico”, relembra Pimenta. Mas depois que entendeu melhor o projeto, ela e Léa toparam a empreitada.

“A gente cria pactos narrativos. Elas vão dizer pra gente o que elas têm na memória. A gente não se preocupa com o fato, o real, do que elas dizem -embora eu ache que o que elas dizem aconteceu. Mas saber se é real ou não, isso não faz parte do jogo”, diz Queirós.

O filme foi concebido antes de Bolsonaro ser eleito, mas Queirós vê que o presidente assumiu naturalmente o papel do vilão da trama. “O Bolsonaro acaba ocupando esse espaço, ele enquanto opressor -o cara que persegue os presidiários, que luta em favor do encarceramento.

Ele aparece só uma vez, em uma passeata em sua defesa, mas atravessa todo o filme”, diz o diretor.
Apresentado na mostra Panorama, a segunda mais importante de Berlim, “Fogaréu” se passa em Goiás Velho, antiga capital goiana e hoje um dos centros turísticos do estado. O filme traz uma denúncia grave: famílias abastadas que adotam crianças (muitas vezes com transtornos mentais), em um gesto aparentemente de solidariedade -mas que, com o tempo, revela-se uma perversa maneira de conseguir trabalho servil sem remuneração.

“Agora é uma prática que já não acontece da mesma forma, mas ocorreu com frequência por muito tempo”, diz Flávia Neves. A cineasta, que nasceu em Goiás, mas se mudou para Niterói (RJ) para estudar cinema, diz que a primeira vez que soube sobre essa prática foi por meio de um professor universitário.

“Fiquei muito perturbada, com isso na cabeça. Até decidir ir verificar no local como era tudo isso.”
De volta ao estado em que nasceu, Neves pesquisou muito e encontrou até tese de doutorado sobre o assunto. “Com o tempo, fui percebendo que eu tinha mais a ver com essa história do que eu gostaria, porque minha mãe também foi adotada e teve esse mesmo tratamento, para trabalhar. E quem adotou era prefeito da cidade”, diz a cineasta.

“Minha mãe não tem deficiência, mas isso de trazer a menina para a família para trabalhar é uma coisa comum no Brasil como um todo. E nas filmagens, ouvi muitos relatos de gente da equipe que conhecia casos parecidos. A história do filme não era tão inédita, daí vem a vontade de falar disso.”

A história se concentra na chegada à cidade da progressista Fernanda, vivida por Bárbara Colen, em sua primeira real chance de mostrar talento dramático no cinema. Ela retorna a Goiás depois de vários anos fora, para despejar ali as cinzas da mãe. Ela volta a ter contato com parentes extremamente conservadores, e o choque entre eles é constante -a ponto de, após um tempo, se tornar um confronto direto.

“É mais ou menos uma trajetória comum”, diz Neves, sobre pessoas que deixam o interior reacionário para conseguir realizações em locais mais progressistas. “Eu mesma também tive que sair [de Goiás] para conseguir ser eu mesma, pra fazer o que eu queria. Para não ter interferência do conservadorismo”, ela diz.

O êxito em Berlim de “Fogaréu” e “Mato Seco em Chamas” os faz se unir a obras como os goianos “Vermelha”, de Getúlio Ribeiro, e “Vento Seco”, de Daniel Nolasco, lançados em 2019 e 2020, respectivamente. O que mostra que o Centro-Oeste é que tem fornecido boa parte da chama que mantém o cinema brasileiro recente de fato aquecido.

Por Bruno Ghetti

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