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FolhaPress

Acusação de mão de obra escrava em fazenda da Volkswagen foi feita por padre nos anos 1980

A própria montadora promoveu as investigações sobre o caso

Parecia uma lenda urbana, diz o pesquisador e escritor francês Antoine Acker: uma montadora de automóveis resolve investir em pecuária de ponta no Brasil profundo, seguindo o lema “Integrar para não Entregar” da ditadura militar (1964-1985). O trabalho, no entanto, é feito em grande parte por mão de obra escrava.

A história da CVRC (Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria), que Acker conheceu em citações esparsas em livros alemães, era real e agora pode render mais um longo processo para a Volkswagen. A empresa foi convocada pelo Ministério Público do Trabalho para prestar esclarecimentos sobre sua antiga propriedade, localizada em Santana do Araguaia (PA).

Uma audiência extrajudicial está marcada na sede do órgão, em Brasília.

Será no dia 14 de junho, às 14h. Parte do material usado pelos procuradores veio do livro “Volkswagen in the Amazon: The Tragedy of Global Development in Modern Brazil” (Volkswagen na Amazônia: a tragédia do desenvolvimento global no Brasil moderno), escrito por Acker em 2017.

“Descobri a história quando fazia doutorado em Florença, queria fazer um trabalho sobre investimentos na Amazônia e me deparei com esse caso em uma nota de rodapé”, disse o autor à reportagem.

Acker afirma que a Volkswagen permitiu o acesso a seus arquivos na Alemanha, e que a matriz se mostrou contrária ao empreendimento em vários documentos. “‘Por que iríamos para a Amazônia criar gado?’, havia esse questionamento interno.”

A explicação estava na Operação Amazônia, um dos tantos planos de ocupação da floresta que existiram no país -dessa vez bancado pelo regime militar. As origens estão na virada da década de 1960 para 1970.

Em 1973, ano em que o projeto da CVRC teve início, a Volkswagen produziu 379,4 mil automóveis no país. O número representava 57,6% de todos os carros de passeio e comerciais leves montados no Brasil naquele ano. Era, com folga, a maior empresa do setor e, portanto, uma grande pagadora de impostos.

A proximidade da empresa com a ditadura militar -historicamente, montadoras sempre são próximas de governos no Brasil- resulta no acordo com a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). O órgão havia sido criado em 1966 para substituir a SPVA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), ainda do governo de Getulio Vargas.

Em outubro de 1966, o então presidente Castelo Branco sancionou a lei nº 5.174. A partir daí, empresas que investissem na ocupação amazônica teriam acesso a uma série de benefícios. O pacote incluía isenções de Imposto de Renda e de taxas federais ligadas a atividades industriais, agrícolas, pecuárias e de serviços básicos. Também não incidiriam tarifas sobre a importação de máquinas e de equipamentos.

De olho nesses incentivos, a Volkswagen entrou no negócio agrário. Um anúncio publicado em jornais e revistas no início dos anos 1970 mostrava a imagem de um boi sob o título “Volkswagen produzido na Amazônia”. Era uma propaganda da Sudam.

Segundo Acker, uma das ideias divulgadas pela montadora era exportar carne bovina para Estados Unidos, Europa e Japão. O argumento de se tratar de um negócio revolucionário para o campo, conciliado aos benefícios tributários, foi usado pela Volkswagen do Brasil para convencer a matriz.

A CVRC começou a operar em 1974. O gerente da companhia era o suíço Georg Brügger, descrito pelo padre Ricardo Rezende como um homem impulsivo.
Rezende foi o responsável por denunciar o trabalho escravo na fazenda da Volkswagen. É dele a maior parte dos documentos que estão no livro escrito por Antoine Acker.

“Montei um arquivo nos anos 1980 sobre a Volkswagen, são quatro pastas com mais de 600 páginas sobre o caso”, disse Rezende à reportagem.

O padre contou que foi morar no sul do Pará em 1978, onde coordenou a Comissão Pastoral da Terra da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) para a região de Araguaia e Tocantins. “Ouvia muitas histórias sobre a fazenda, mas sempre depois dos fatos terem acontecido, e aí aguardávamos a ocasião de fazer um flagrante.”

Em 1983, Rezende conheceu três jovens que tinham acabado de escapar da CVRC, também chamada de Fazenda Volkswagen. Eles teriam alegado que precisavam fazer o alistamento militar e assim conseguiram sair, mesmo tendo dívidas a quitar.

Esses débitos, segundo o padre, eram a forma de manter os trabalhadores cativos -o que, segundo o Ministério Público do Trabalho, caracteriza a servidão por dívida. Eles eram impedidos de sair enquanto não estivessem em dia.

Com a denúncia feita pelos jovens, Rezende conseguiu juntar uma comitiva de deputados estaduais de São Paulo e visitar a fazenda da Volkswagen, com o conhecimento da montadora. Havia sinais de que a empresa não tinha pleno conhecimento do que de fato ocorria.

O padre relata que, no meio do caminho até a propriedade, encontrou um dos “gatos” da CVRC. Assim eram chamados os empreiteiros que agiam como recrutadores e capatazes na região.

Rezende afirma que o homem parou a comitiva e os levou até a caçamba da picape que dirigia. Lá havia um trabalhador amarrado, que foi usado como um exemplo de como aquele povo seria fujão. “Ele não tinha a menor consciência dos crimes que estavam cometendo na fazenda.”

A CVRC tinha construções bem cuidadas de alvenaria e de madeira. O gerente Georg Brügger tentava mostrar o lado desenvolvido da propriedade, até que um homem ardendo em febre -provavelmente por causa de malária- chegou implorando socorro, disse o padre. Ele pedia para ser levado embora dali.

Brügger teria perdido o controle e berrado com o padre e com o homem doente, mas depois tentou consertar a má impressão. No jantar, ofereceu um cálice e uma patena a Rezende. Os artefatos eram talhados em pau-brasil, madeira de árvore que era protegida por lei nacional e, portanto, não poderia ser derrubada.

CASO REPERCUTIU NO EXTERIO

Apesar dos relatos de Rezende e dos deputados, o caso teve mais repercussão no exterior do que no Brasil. A fazenda foi vendida em 1986 por cerca de US$ 20 milhões, sem julgamentos ou indenizações.

O procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que coordena a investigação sobre o caso, disse que a Volkswagen foi considerada responsável pelas violações aos direitos humanos ocorridas dentro da fazenda.

“Essas violações incluiriam falta de tratamento médico nos casos de malária, impedimento de saída da fazenda em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas (servidão por dívidas), alojamentos instalados em locais insalubres sem acesso à água potável e com alimentação precária”, diz o texto enviado pelo Ministério Público do Trabalho.

Os arquivos do padre Ricardo Rezende incluem fotos de pessoas que conseguiram escapar da fazenda da CVRC e documentos semelhantes a cartas de alforria, que mostram que o trabalhador havia quitado suas dívidas e, portanto, poderia ir embora.

O Ministério Público do Trabalho relata que a propriedade paraense da Volkswagen tinha 139 mil hectares e cerca de 300 funcionários registrados.

Rezende estima que outros 600 trabalhadores estavam sob regime análogo à escravidão. Eles eram recrutados pelos “gatos” em povoados da região.

Em nota, a Volkswagen afirma que “reforça seu compromisso de contribuir com as investigações envolvendo direitos humanos de forma muito séria. A empresa não comentará o assunto até que tenha clareza sobre todas as alegações.”

A resposta curta da Volkswagen veio da Alemanha, onde o caso voltou à tona após matéria publicada neste domingo (29) pelo jornal Süddeutsche Zeitung.
Em setembro de 2020, a VW do Brasil se comprometeu a destinar R$ 36,3 milhões a ex-funcionários da empresa que foram presos, perseguidos ou torturados durante a ditadura militar.

O pagamento foi anunciado após a conclusão de três inquéritos civis no Ministério Público Federal, no Ministério Público de São Paulo e no Ministério Público do Trabalho.

A própria montadora promoveu as investigações sobre o caso. “Lamentamos as violações que ocorreram no passado.

Para a Volkswagen AG, é importante lidar com responsabilidade com esse capítulo negativo da história do Brasil e promover a transparência”, escreveu à época Hiltrud Werner, membro do conselho de administração da montadora.

Por Eduardo Sodré

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