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Bolsonaro ameaça artistas, diz Tiago Rodrigues, agora à frente do Festival de Avignon

Cerca de 600 jornalistas cobrem Avignon anualmente

Nelsom de Sá – O autor, ator e diretor português Tiago Rodrigues estava em São Paulo com “By Heart”, em março do ano passado, “quando esta loucura toda começou”, lembra ele. As apresentações finais da peça na MITsp, a Mostra Internacional de Teatro, foram canceladas diante do avanço da pandemia. E ele voltou às pressas para Lisboa, para fechar o Teatro Nacional D. Maria 2ª, que dirige.

Agora, vai tentar achar o caminho de volta para o teatro na Europa, no período pós-pandemia ou de transição, que começa agora. Rodrigues acaba de ser escolhido como novo diretor de Avignon, um dos maiores festivais de teatro no mundo.

Será o primeiro não francófono em mais de 70 anos. O diretor brasileiro Antonio Araújo, da MITsp, descreve a simples escolha de seu nome como “um fato cultural importante”, pela poética sensível, da palavra, contra o autoritarismo “de várias ordens”.

“O Tiago traz essa questão da força do teatro para as obras dele”, diz, “e a gente está vivendo este momento de terra arrasada”. A pedido do jornal, Araújo, que estava “no mato, sem luz elétrica”, tirando um tempo de São Paulo, fez uma pergunta para Rodrigues. “Qual é o papel que um festival do impacto simbólico de Avignon tem neste contexto? Como pretende trabalhar este retorno do teatro, após o período de ‘wasteland’?”
Rodrigues respondeu de Nápoles, na Itália, onde apresentava seu novo espetáculo, “O Cerejal”, com a atriz francesa Isabelle Huppert.

“O que é ver uma peça de teatro hoje? Nós já sabemos, agora que começamos a voltar, que entrar num teatro tem uma força tremenda, estarmos juntos é um acontecimento”, diz.

“Depois de quase um ano e meio e diante dos meses difíceis que ainda vamos atravessar, percebemos o poder de estarmos entre desconhecidos, em situação de igualdade face a esse mistério da criação artística.”

Na prática, ele quer usar Avignon, “em que o público tem papel tão fundamental, viajando para a cidade como se fosse para o país do teatro”, para questionar o que é a participação, a experiência do espectador.

Sua nomeação coincide com o lançamento no Brasil da coletânea “By Heart e Outras Peças”, com cinco textos seus. A diretora brasileira Christiane Jatahy lembra no livro que Rodrigues comparava a companhia Mundo Perfeito, o primeiro grupo do diretor português, a “um pequeno comércio local, a mercearia da esquina, onde a tônica é o humano”.

Questionado se é possível levar o espírito da mercearia da esquina para um festival com 20 teatros, 50 espetáculos diferentes em 300 apresentações, 140 mil ingressos e um orçamento de EUR 14 milhões, ele responde “claro que é”.

“Essa dimensão pode ser monumental e Avignon é simbolicamente gigante para o teatro mundial, mas continua a ser um lugar do tamanho das pessoas, quando acontece o encontro físico, quando elas se reúnem em salas ao ar livre ou fechadas.”

É então que se dá “o risco da imperfeição” e até do vento e da chuva, muito presentes em Avignon. “O risco na assembleia humana do teatro vai sempre fazer com que seja também um lugar de resistência à disrupção mecânica, digital, global, industrial da arte”, acrescenta.

“O Cerejal” foi o espetáculo de abertura da 75ª edição do festival, no início do mês, e a recepção à sua estreia mundial não foi das melhores, por parte da imprensa francesa e internacional –cerca de 600 jornalistas cobrem Avignon anualmente.

Era esperada uma maior intervenção de Rodrigues sobre o original de Tchékhov, na linha de seus trabalhos mais conhecidos. “Avignon é tradicionalmente um lugar de criação, risco, onde se compartilha com o público tentativas, e que paradoxalmente se tornou uma vitrine enorme, com uma pressão gigantesca”, diz ele, sobre sua peça no festival.

“Mas é preciso escolher de que lado estamos, se da experimentação, da tentativa, ou do produto de sucesso. E eu estarei sempre do lado do risco, da vulnerabilidade e da aprendizagem”, ele diz. “Se fazer um texto integral de Tchékhov pode ser um problema, então eu desisto, pode já mandar vir o juiz e condenar”, ele acrescenta, rindo.

Diz que tinha o desejo de um dia montar um texto sem adaptar, “fazer um repertório”, como chama. Quando ele e Huppert se encontraram, em 2018, e a atriz falou que o via como “tchekhoviano”, foi o que decidiu fazer.
“O que me interessa no Tchékhov é essa proximidade entre sua escrita e os atores. Não era tanto ter um conceito de encenação, mas as condições para um jogo em que os atores pudessem se beneficiar de todas essas camadas que existem nele.”

Contra a tradição de encenar o dramaturgo russo com traços de melancolia ou lentidão, ele busca trazer um autor “vibrante, febril”, se aproveitando de Huppert, atriz “absolutamente fora da forma” que faz Liubov Ranevskaya, a dona da propriedade.

O livro que sai agora traz algumas das peças em que Rodrigues reinterpreta textos, como “Antônio e Cleópatra”, a partir de Shakespeare. Com criações de diferentes momentos, a coletânea buscar “dar a conhecer um percurso”, segundo o autor. “Para o leitor brasileiro que não conheça o meu trabalho, como imagino que será a maioria, há uma descoberta muito diversa daquilo que é minha escrita.”

Umas das peças é “Três Dedos Abaixo do Joelho”, construída em cima dos relatórios internos da censura, na ditadura portuguesa, tornados públicos em 2005. “Muitos artistas censurados nos anos 1950, 1960, 1970 puderam ler por quê. Em alguns casos, a razão era violenta, em outros era cômica.”

O título se refere à medida mínima exigida para a saia de todas as atrizes nos palcos de Portugal. “Foi uma maneira de devolver ao teatro português esse pensamento que o oprimiu durante tantas décadas”, diz ele. “E foi muito importante para mim, como aprendizagem para trabalhar a realidade e a ficção, a manipulação teatral, na minha afirmação como autor, nessa relação com um documento anterior, na lógica da adaptação.”

Rodrigues fala então do Brasil. Desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente, diz, “há uma real ameaça à liberdade artística, à democracia, e há uma deriva populista de inspiração fascista”. Ele não vê mais os artistas brasileiros, “tanta gente que é fundamental na criação mundial”, trabalhando em plena liberdade.

“Sentir e os observar serem cerceados na sua liberdade, tanto econômica como política como socialmente, serem cercados por um pensamento antidemocrático é muito assustador e é algo que venho combatendo com os meios que estão ao meu alcance, com enorme solidariedade para os artistas e as artistas do Brasil.”

Encerrou a entrevista dizendo querer “deixar bem claro que o Festival de Avignon está com os artistas do Brasil democrático e livre”.

BY HEART E OUTRAS PEÇAS
Preço R$ 58 (224 págs.)
Autor: Tiago Rodrigues
Editora: 34

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